A clareira era uma falha quase imperceptível na densa floresta, pequena demais para um acampamento, ideal para histórias de terror ao redor de uma fogueira. Era cercada por árvores altas, robustas, efetivas em bloquear o sol, e os poucos raios de luz que conseguiam incidir naquele lugar não seriam suficientes para um experiente ourives distinguir moedas de ouro das de bronze.
Fazia silêncio, incômodo e irreal. Os galhos e as folhas não se mexiam; os pássaros não cantavam; os insetos não zumbiam. Era como se não houvesse nada nem ninguém ali. Mas havia. E todos os olhares estavam fixados no corpo caído no centro da clareira.
Inconsciente, vestido com trapos, a cara na grama úmida… Atlas em nada era diferente de um cadáver, esperando para apodrecer.
Dos seres observando o corpo inerte, o velho era o único que não se escondia. Tinha tempo e paciência para esperar o pirata acordar sozinho, mas sabia que era o momento para despertá-lo. Com as palmas das mãos para trás, empurrou o tronco onde estava escorado e voltou a sobrecarregar os joelhos com a ingrata tarefa de sustentar o próprio peso. Os poucos passos o separando do semimorto foram dados com dificuldade, mas a satisfação ao alcançá-lo recompensou o esforço. O velho se equilibrou, firmando bem o pé esquerdo no chão, e, com o direito, deu um chute não tão fraco nas costas de Atlas.
O pirata arregalou os olhos, assustado, desorientado, e permaneceu imóvel. Sua cabeça doía, e somado ao irritante zumbido que cortava a sua mente, imaginou ter levado uma coronhada. Ele passou a mão pelo crânio, procurando por sangue. A ausência de cabelo facilitou o trabalho, e não encontrou nada além de suor. Quis se sentir aliviado, mas não podia. Precisava lidar com a possível ameaça atrás de si. Mandou então os impulsos para os músculos do braço, depois para os da perna. Nada aconteceu. Sem forças, não conseguia se levantar. Parecia estar pregado ao chão.
— Se você nem consegue se levantar, não deveria ter vindo aqui — disse o velho, agachado ao lado dele. Sua voz era rouca e carregava um cansaço de várias vidas.
O coração do pirata disparou. Nunca havia escutado aquela voz, estava certo disso, mas era terrivelmente familiar, como se os seus medos tivessem ganhado a capacidade de sussurrar mentiras em seu ouvido. Ele forçou a vista, um esforço para descobrir que lugar era aquele, mas sua dor de cabeça piorou com a tentativa. O velho deixou escapar uma breve risada.
— Você acorda e não sabe onde está, não sabe que dia é. Você tenta buscar na memória alguma pista, mas não encontra lembranças. — Suas palavras soavam como uma explanação presa há muito tempo dentro de si.
Atlas ficou ainda mais intimidado. De fato, lembrava-se de muito pouco, e nada lhe dizia onde estava ou como fora parar ali.
— Você não consegue raciocinar direito, não consegue sincronizar os seus pensamentos, e isso te deixa nervoso.
Atlas tentou se levantar mais uma vez. Sem sucesso.
— Você se sente impotente… perdido….
Outra tentativa. Nada.
— Você perde a esperança… Mal sabe quem é. Incapacitado, o pirata respirou fundo, buscando força, talvez coragem, e tossiu grosseiramente ao sentir o ar passar pela garganta.
— Vire-se! Levante! — ordenou o velho. — Você vai morrer aqui!
A ameaça o atingiu em cheio. Já tinha sido ameaçado de morte diversas vezes, vezes até demais, mas essa lhe soava diferente: não acreditava que pudesse escapar. Respirou fundo mais uma vez e, com os punhos cerrados, forçou o braço direito na grama, conseguindo com bastante esforço, ficar de barriga para cima. Ao virar o pescoço, seus olhos encontraram uma face asquerosa, cheia de marcas e cicatrizes, parcialmente coberta por uma barba grisalha, suja e irregular.
— Você já esteve em situações melhores, hein… Atlas? — desdenhou o velho.
Atlas abriu a boca, pronto para soltar uma maldição, mas não encontrou a voz. O desespero e a angústia de se perder um ente querido tomaram conta dele. Lançou então a mão na direção do velho, tentando agarrá-lo, um pedido de socorro. A repugnante figura se esquivou da tímida investida e despejou sobre o pirata uma risada zombeteira.
— Se não quiser morrer aqui, é melhor correr! — sugeriu. Sem esconder o esforço, o velho se levantou e começou a andar. Já estava quase fora de vista quando adentrou a mata e sumiu entre as árvores.
Atlas passou a mão no rosto, limpando o suor que escorria abundantemente, e percebeu ser ele quem estava umedecendo a grama. Olhou para os lados, sem saber o que fazer.
— Corra! — insistiu a voz rouca, de dentro da mata.
O pirata nem mesmo teve tempo de se assustar com o grito, pois ele veio acompanhado de um terrível rugido, daqueles que fazem as aves voarem de seus ninhos e os pequenos roedores se esconderem no canto mais profundo de suas tocas. Atlas, lutando contra a paralisia, passou a mão pelo corpo, procurando a espada. Não a encontrou. O rugido veio novamente, como um tsunami, destruindo tudo pela frente. O chão pareceu tremer, mas não era o chão que tremia. Atlas não sabia qual criatura poderia estar emitindo um urro tão monstruoso, mas sabia bem qual era o seu significado: a morte.
O céu, todo o céu, alternava tons de laranja e vermelho, como se infinitos sóis estivessem se pondo, um para cada ponto do horizonte.
O velho estava sentado na praia com as pernas cruzadas. Parecia estar admirando o mar, mas já não via nada ali para ser admirado. Sua mente estava em outro lugar. Sem olhar para o que estava fazendo, tirou um cachimbo preto do bolso da calça imunda. Com uma rápida sacudida no ar, o fumo se acendeu. Ele levou o cachimbo à boca, tragando e soltando uma rala fumaça negra. Estava sentado de costas para a floresta e não se virou quando o pirata saiu correndo de entre as árvores, desesperado e aos tropeços. Mas o observou com desprezo quando cruzou a sua vista e desabou na areia alguns metros à frente. Não odiava Atlas, mas precisava destruí-lo. Era o seu único propósito, era a sua única razão de existir.
O pirata se levantou apressado, olhando para trás. Não viu nada saindo da mata. Não se lembrava do que havia acontecido. Uma hora estava jogado na grama, indefeso, à mercê de algum tipo de animal maligno. No outro, estava correndo em direção a frestas de luz. Agora, aquela praia. Ao se certificar de sua segurança, passou a mão na volumosa barba, para tirar a areia. Olhou em volta, viu o velho e o mar… O mar!
O queixo de Atlas caiu o quanto podia cair. Ele tentava entender aquela visão, mas era muito para um pirata processar. As águas estavam paradas, nenhuma onda, nenhuma oscilação. O oceano era um imenso espelho d’água, calmo e cristalino. Ver aquela calmaria, aquela total ausência de movimento, lhe deu uma forte tontura e revirou o seu estômago. Ele caiu de quatro e vomitou. Ao abrir os olhos, viu uma gosma dourada, reluzente, se misturando com a areia, mal sendo possível distinguir uma coisa da outra.
— Te vendo tão patético assim, quase não tenho mais vontade de acabar com você — disse o velho, soltando fumaça pelo nariz.
Atlas olhou para ele, impotente. O velho continuou:
— Vou te dar uma escolha, pirata. — Ele tragou suavemente o cachimbo e se levantou após muitos movimentos cuidadosos. — Está vendo aquela montanha no centro da floresta? — O pirata ajeitou o corpo, sentando-se na areia, e olhou para a direção que o velho apontava. — No topo dela existe um tesouro, algo que preciso já há algum tempo. Você tem duas opções. A primeira é levantar essa carcaça malcheirosa da minha areia e subir aquela porcaria de montanha. A segunda é ficar aqui, ou fracassar em resgatar o tesouro, fazendo dessa ilha o seu túmulo. A decisão é sua.
O velho balançou o cachimbo, apagando a brasa, e o guardou novamente no bolso. Atlas se levantou, ainda meio tonto, e, sem deixar de encarar a maquiavélica figura, deu um passo em sua direção. Antes que pudesse dar o segundo, viu o velho gargalhar. De relance, também viu a onda gigante, um instante antes de ser atingido em cheio. Não entendeu nada que aconteceu a seguir. Quando parou de ser chocalhado e jogado de um lado para o outro, estava debaixo d’água. Ele arqueava os braços e batia as pernas, mas não parecia sair do lugar. Não sabia para que lado ficava a superfície, e o pânico aumentava à medida que seu fôlego diminuía. Nunca imaginou que morreria afogado. As águas ficavam cada vez mais escuras, já não enxergava. Um pouco antes de perder a consciência, uma voz rouca ecoou em sua mente: “Esse é meu mundo, pirata. Eu faço as regras”.
Quando voltou a si, estava seco, andando na floresta.
A taverna era uma construção antiga, toda de madeira. Ficava na metade do caminho entre a praia e a montanha, à margem de um pequeno riacho cujas águas pareciam correr nos dois sentidos. Entender como aquela estrutura ainda se mantinha em pé era mais complicado do que entender o que uma taverna estava fazendo ali, no meio do nada. Para piorar a sua aparência, dez passos à frente da entrada, um macabro coelho de dentes afiados havia sido entalhado no que algum dia fora o tronco de uma grande árvore. Ele não tinha um dos olhos, sendo impossível dizer se o detalhe fazia parte do projeto original ou se era a obra de algum vândalo. O coelho sorria, e sua expressão maligna deixava claro, até para o mais imprudente dos homens, que entrar naquele lugar era uma péssima ideia.
No interior, iluminado pelos raios de sol que atravessavam os vários buracos do telhado, o velho estava em pé atrás do balcão. Ele se servia uma bebida quente, sem gás e amarelada, cor parecida com a dos seus dentes. As mesas, que preenchiam o espaço entre a entrada e o bar, estavam todas ocupadas. Em cada uma das cadeiras, havia um esqueleto, totalizando algumas dezenas deles. Alguns seguravam canecas, outros estavam curvados para o lado ou caídos sobre a mesa, como se tivessem bebido demais. Em uma mesa no canto, quatro esqueletos seguravam cartas de baralho, ainda escondendo o jogo um dos outros, e um deles omitia uma carta entre a tíbia e a fíbula. Imóveis, as ossadas davam ao salão um ar mais caricato do que assustador, figurando, com menos vida, o clima que uma taverna deveria ter.
O velho estava servindo a sua segunda caneca quando Atlas entrou.
— Eu ofereceria algo — disse o anfitrião, virando a garrafa e esperando até a última gota cair na caneca —, mas as bebidas aqui vão te fazer lembrar, não esquecer.
Atlas ignorou aquilo e começou a andar entre as mesas, reparando com curiosidade nos esqueletos. Cada um deles parecia ter sido cuidadosamente colocado naquela posição. Todos vestiam pelo menos uma peça de roupa, nenhuma repetida. Um chapéu com uma caveira sorridente chamou a atenção do pirata. Depois foi um lenço com uma estampa bem familiar. Então uma capa com um brasão cheio de corvos, botas com o desenho de um sol dourado, um tapa-olho vermelho… Várias lembranças brotaram na sua cabeça, e o padrão havia ficado claro. Aquelas peças, todas elas, pertenciam a pessoas que ele havia matado. Um arrepio subiu pelo seu corpo, e ele sentiu que a qualquer momento os esqueletos se levantariam buscando vingança.
— É melhor parar de mandar gente pra cá, pirata. Como pode ver, já está cheio.
Com a caneca na mão, o velho indicou as mesas ocupadas. Em seguida, a levou à boca, e alguns goles barulhentos terminaram a bebida. Atlas continuou se aproximando, agora mais devagar, parando a três passos do bar. Antes que pudesse pensar em qualquer ação, o velho se abaixou, sem sair totalmente de vista, e voltou com um objeto na mão.
— Reconhece?
Atlas arregalou os olhos ao ver a sua espada. Com os dentes e punhos cerrados pela irritação, ele deu um passo à frente. Não foi preciso dar outro. Segurando-a pela lâmina, tremulante, o velho estendeu a espada, oferecendo-a ao pirata. Atlas estranhou o gesto, o medo de cair em algum truque, mas esticou a mão e a puxou com firmeza assim que alcançou o punho. Em posse da arma, o pirata fez a primeira e única coisa que passou pela cabeça: arrumou o corpo, colocando-se em posição de combate, e desafiou o seu adversário. O velho sorriu. Atlas fechou a cara. Ele se inclinou para frente, pronto para desferir o primeiro golpe, e não se moveu… Seu corpo, do pescoço para baixo, estava coberto por mãos brancas. Todos os esqueletos do salão estavam ali, segurando seus músculos, um grande emaranhado de ossos.
— Eu já falei, pirata, esse é o meu mundo. Você não tem chance contra mim.
As mãos começaram a subir pelo seu pescoço e alcançaram o seu rosto. Elas o apertavam, o esmagavam.
— Se você quiser sair daqui, suba a montanha e me traga o tesouro.
As mãos alcançaram os olhos, e Atlas não viu mais nada.
— Eu não sou o único aqui que quer te destruir. Da próxima vez, vou permitir que terminem o trabalho.
Sua cabeça estava coberta, e a última lembrança que Atlas teve da taverna foi estar sufocado em um túmulo de ossos.
O velho caminhava pela floresta, se apoiando nas árvores e se desviando delas. Seus músculos já estavam fracos demais para grandes deslocamentos, ou mesmo pequenos, mas ele continuava andando. Enquanto a mão direita saltava de tronco em tronco, a esquerda segurava o cachimbo entre as tragadas.
— Não se faça de idiota! — sugeriu o velho, parando de repente. — Você não pode se esconder de mim.
Após um breve silêncio, a fera soltou um grunhido de insatisfação e pulou de trás de um arbusto, bloqueando o caminho do velho.
— Até que de perto você não parece tão assustadora — ele disse, encarando os enormes olhos amarelos do gigantesco felino. A fumaça negra, um pouco mais rala, saía de suas narinas enquanto falava.
A pantera rosnava, com as pernas dianteiras flexionadas em posição de ataque. Suas presas arrancariam os membros de sua vítima com uma única mordida, assim como suas garras rasgariam um homem ao meio com um único golpe. O velho resmungou qualquer coisa e deu um passo lateral, driblando a criatura e seguindo em frente. A pantera sacudiu o corpo e, antes de ir atrás dele, uivou, novamente insatisfeita.
Lado a lado, o velho e a fera andaram por algumas dezenas de metros. Apenas o som de seus passos quebrava o silêncio entre eles, silêncio este que agradava os dois. Conforme avançavam, os ruídos de um terceiro caminhante ficavam cada vez mais claros. A princípio, não houve reação de ambos, como se não se importassem com o intruso. Mas se importavam. E muito.
Quando a distância entre eles não era maior do que uma dezena de árvores, a pantera se lançou como um raio na direção do som. O velho balançou a cabeça, condenando a pressa. Um rugido estridente tomou a floresta, e não demorou para os primeiros sons de luta chegarem ao seu ouvido. O pisotear da grama, o bradar da espada, as batidas ocas na madeira e todos os sonidos de uma caçada. Sentiu cheiro de suor, sangue e desespero. A luta era feroz e não demorou muito. Um grunhido de dor deu lugar a um uivo melancólico que pôde ser escutado por toda a ilha.
O velho havia se cansado de andar. Escorou-se em uma árvore e deu uma sacudida no cachimbo para apagar o fumo. Fechou os olhos e já não estava mais ali.
O silêncio voltou a dominar a floresta, e tudo pareceu ficar muito distante, como lembranças de um sonho.
Ao pé da montanha, o velho aguardava sentado em uma pedra duas vezes mais alta que ele. Após algumas baforadas de fumaça, Atlas saiu ofegante de dentro da floresta. Sua roupa trazia marcas de garra em vários lugares, e o sangue escorria sem timidez. A mão direita empunhava a espada como se ainda estivesse em combate, a lâmina suja até a metade com um sangue escuro e espesso.
— E eu achava que você não podia ficar com uma aparência pior… — zombou o velho.
Atlas olhou para cima e se perguntou como aquele ancião conseguira subir naquela pedra. Depois se lembrou de que nada naquele lugar fazia sentido.
— Por que parou? Vá! Siga em frente! O tesouro está no topo da montanha, atravessando a gruta no fim das escadas.
Atlas olhou aliviado para a trilha montanha acima. Era formada por degraus estreitos e irregulares, boa parte menor do que seus pés, mas seria muito melhor do que escalar o paredão rochoso. O pirata passou confiante pelo velho, sem se preocupar em olhar para ele, e começou a subida. Antes de sumir entre as rochas, escutou:
— Você não pode vencê-la…
Atlas quis refletir sobre aquilo, mas não conseguiu se concentrar. Com poucos minutos de subida, já estava sem fôlego e pingando de suor. Era certo que não estava no melhor da sua forma física, mas ainda assim era forte e resistente. A subida lhe exigia um esforço descomunal. Cada degrau vencido parecia lhe roubar a energia de cem. Logo uma fraqueza intensa se apoderou de seu corpo. Seus músculos queimavam, suas articulações estralavam, sua coluna curvava. Continuou firme, lutando contra o cansaço desmedido. Acreditava não estar mais do que meia hora naquela montanha, mas parecia estar subindo há dias.
A trilha começava cortando a montanha, mas agora a contornava, formando um desfiladeiro traiçoeiro à direita de quem subia. A fobia de altura fazia Atlas se esforçar para não olhar para baixo. Subia se apoiando na parede à esquerda, mas a fadiga o fazia tropeçar nos degraus mais altos. Cada desequilíbrio fazia seu coração disparar, e o estômago revirava com a vertigem. Mesmo assim, conseguiu sorrir ao ponderar que estava à beira da morte.
Outra meia hora de subida se passou. Atlas se deixou cair, arfante, esgotado. Havia chegado ao seu limite. O corpo tremia, esparramado entre as pedras. Virou-se, ficando com as costas no chão, e reparou que o tempo havia fechado. Nuvens carregadas tomavam conta do céu, e a noite devia estar próxima. Ele estava encharcado de suor, e nem uma brisa soprava sobre ele.
— Não foi à toa que eu te derrotei com tanta facilidade…
Escutar aquela voz o assustou mais do que tudo que havia visto naquela ilha até então. Não sabia de onde ela vinha, mas sabia de quem era. Pertencia ao homem responsável pela morte da sua companheira, da sua melhor amiga, a única mulher pela qual havia se apaixonado. Pertencia ao homem que por duas vezes o deixou à beira da morte. Pertencia ao homem que jurou matar. Aquela era a voz de Ônix.
Atlas virou o corpo mais uma vez e avistou dois vultos vários metros trilha acima. Um era negro, e Atlas tinha certeza de que era Ônix. O outro era dourado. Antes que pudesse se perguntar sobre a sua identidade, escutou uma risada debochada, indiferente, vinda de sua direção. Ulysses, ele concluiu. Atlas também o odiava, mas era um sentimento diferente daquele que nutria por Ônix. Os negócios da família Valdrick haviam levado seu pai à falência. Algum tempo depois, ao suicídio. O pirata sabia que não podia matar Ulysses, e mesmo que pudesse, não mudaria nada. Alguém igual ou até pior entraria em seu lugar. Ele se contentava em apenas antagonizar os planos do rei.
Aquele turbilhão de lembranças fez Atlas martelar o chão com ódio. De súbito, não se sentia mais cansado. Levantou-se em um pulo e disparou na direção dos vultos, que corriam na mesma velocidade à sua frente. Ele os perseguiu por quase um quilômetro, até os dois sumirem em uma curva montanha adentro. O pirata alcançou a abertura e atravessou uma estreita passagem entre dois paredões de rocha que levava a um pequeno vale. E também ao fim da subida.
A trilha terminava em uma pequena gruta, cuja entrada estava quase completamente bloqueada por duas estátuas gigantescas. À esquerda, uma estátua negra do pirata Ônix brandindo uma espada. À direita, uma estátua de ouro do rei Ulysses sorrindo com deboche. Ambas figuras o encaravam, e seus olhares pesavam sobre ele. Ao se aproximar, reparou que precisaria rastejar sob as estátuas para entrar na gruta. Atlas permaneceu imóvel, relutante, dominado pela raiva. Imaginou-se socando Ulysses e se deliciou com o prazer de perfurar o coração de Ônix com sua espada. Vislumbrou diversos cenários nos quais teria a sua vingança, sentindo o sabor doce em sua boca.
Atlas sorriu para si mesmo, agachando-se, e rastejou. Um dia os enfrentaria, cada um à sua maneira, mas não seria naquele lugar.
Dentro da gruta, escutou um estrondo e foi atingido por uma forte corrente de vento vinda da outra extremidade. Não era o tipo de vento que ele gostava, pelo contrário. Ao sair do outro lado da gruta, já era noite, uma noite mais escura do que o normal. No horizonte, vários clarões denunciavam a tempestade que estava por vir. Com a luz dos relâmpagos, Atlas pôde ver que estava em um grande penhasco, no lado norte da ilha. O penhasco se afunilava de tal forma que o seu limite já estava acima do mar. Na ponta, o pirata viu a Estrela Solitária, o seu navio.
Os olhos cansados do velho fitavam a fumaça que saía do cachimbo. O que ele realmente via era Atlas, escalando com dificuldade a lateral da embarcação pelas cordas da enxárcia, que havia se desprendido do mastro principal. Além do pirata, o velho também observava a gigantesca pantera, esperando o pirata impacientemente dentro do navio.
A ponta do penhasco perfurava completamente o casco da Estrela Solitária, saindo alguns metros do outro lado. Os dois grandes buracos nas laterais não eram a única avaria. O mastro do traquete havia tombado sobre o convés, destruindo boa parte do piso, espalhando lascas por todos os lados. Não demoraria para o mastro principal seguir o mesmo caminho, faltando apenas escolher para qual lado tombaria. Todas as velas estavam completamente rasgadas. De algumas restavam apenas grandes faixas cinzentas. Ver o navio naquele estado umedeceu os olhos de Atlas e pôs um nó em sua garganta.
Escondida atrás de alguns barris amontoados na proa, a pantera estudava o pirata enquanto ele escalava a amurada. Suas garras arranhavam a madeira de tanta ansiedade.
Atlas pulou no convés e começou a procurar o tal tesouro. Estava escuro, mas com a ajuda dos relâmpagos, avistou uma arca ao lado da cabine do capitão. Quando estava a meio caminho do seu destino, escutou o rosnar da fera e viu os seus olhos brilhantes correndo na sua direção. Assustado, se esquivou da primeira investida, obrigando o animal a frear, virar o corpo e atacar novamente. A adrenalina espantou o medo, e ele voltou a perceber que segurava a espada, ainda suja com o sangue do felino. Atlas conseguiu se desviar do segundo ataque e viu uma brecha para contra-atacar. Brandiu a espada, errando a fera por muito pouco.
A pantera recuou, atravessando o convés até a proa, onde parou e soltou um rugido maligno. Como uma resposta ao seu chamado, um relâmpago iluminou o céu, e uma terrível tempestade começou a cair. Relâmpagos, trovões e centenas de raios por todo o horizonte. A água os atingia como pequenas pedras, e o vento era tão forte que fazia o barco balançar como uma gangorra.
O ferimento que Atlas provocara na fera, ainda na floresta, havia sumido, e o pirata se perguntou se essa seria outro animal e quantos dele existiriam naquele lugar. A pantera avançou mais uma vez. Altas girou o corpo, escapando das presas e proferindo um golpe no torso do felino. A criatura grunhiu de dor. O corte tinha sido profundo, dando ao pirata a sensação vitória. Correu então na direção do animal atordoado, mas no instante que articulava o ataque o navio balançou, e sua investida foi completamente desequilibrada.
A fera rolou no chão, escapando facilmente do golpe, e aproveitou a guarda baixa para cravar as imensas presas na mão direita do pirata. Atlas largou a espada e caiu para trás, com a pantera por cima. O fôlego escapou de seus pulmões e uma joelhada foi aplicada instintivamente, uma tentativa desesperada para se livrar da mordida.
Funcionou. A pantera grunhiu com a pancada na barriga e se afastou, receosa por outro golpe. Atlas se levantou, cambaleante. Não conseguia mover os dedos, a mão da espada estava inutilizada. Só havia sentido tamanha dor duas vezes na vida, ambas pelas mãos de Ônix.
Um raio atingiu o mastro principal, ateando fogo nos restos de vela. As chamas eram ardiam furiosamente e sobreviviam à tempestade. Logo se espalharam pelo pano e pela madeira, jogando bolas de fogo no convés. Aos tropeços, Atlas se afastou dos focos de incêndio, mantendo a mão direita protegida embaixo do braço esquerdo. Havia perdido a fera de vista. Sabia que a qualquer momento sofreria um novo ataque.
A criatura investiu pelo flanco esquerdo, o derrubando. Atlas caiu no convés por cima da mão ferida. Teria gritado de dor se tivesse voz. Sentiu a pata da pantera nas costas, o esmagando contra o chão. Então sentiu as garras, e o sangue em sua boca tinha sabor parco de derrota. O animal rugiu, um rugido de triunfo.
Atlas nunca havia visto a morte tão de perto. Desesperado, tateou em volta buscando uma arma. Encontrou algo e virou a cabeça para ver uma lasca de madeira do tamanho de um punhal, com a ponta em brasa. Ele pegou a lasca com a mão boa e, em um movimento firme, a encravou na lateral da fera, fritando a carne perfurada.
A pantera grunhiu e saiu de cima de sua presa, correndo na direção da proa. Atlas, encharcado de água e sangue, se levantou apressado e se arrastou até a amurada exterior, que dava para o mar. Ele apoiou as costas na mureta e, ao se virar novamente para o navio, viu a fera poucos metros na sua frente. Iluminada pelo fogo, parecia ainda mais assustadora. Estava recomposta, sem ferimentos, como se não tivesse sido golpeada pela espada ou pelo punhal improvisado. Atlas cuspiu um misto de saliva e sangue e aceitou que não podia derrotá-la.
A pantera balançou o corpo e esticou os músculos, uma preparação para o último ataque. Ela deu um passo à frente, mas parou ao perceber que Atlas estava pulando a amurada. Ele se apoiou do lado de fora, segurando-se apenas com a mão esquerda. Suas pernas tremiam. Parecia estar pronto para se jogar ao mar. A fera avaliou aquele movimento, o estudando como uma armadilha. Logo viu a expressão atormentada na face do adversário e considerou não passar de uma ação desesperada de alguém que já havia abandonado a razão. A verdade era uma só: Atlas tinha a morte à sua frente e atrás de si.
O felino se alinhou com o pirata. Soltou um último rugido antes do ataque, uma trombeta do apocalipse, e investiu. Corria tão rápido que suas patas mal pareciam tocar o chão.
A alguns passos da amurada, a pantera saltou, mirando o peito de Atlas. Com um movimento rápido, ele se deixou cair para trás, e a fera pulou no vazio. Ela lamentou o erro enquanto passava por cima do seu alvo, mas mesmo assim estava satisfeita. Os dois morreriam juntos…
A satisfação durou pouco.
Enquanto caía, a pantera olhou para cima e viu Atlas pendurado de ponta-cabeça, com o pé enrolado nas cordas da enxárcia. Um longo uivo melancólico tomou a noite, e a tempestade parou. O pirata rangia os dentes, e o medo da altura o fez esquecer as diversas dores. Com muita dificuldade — e apenas uma mão —, escalou de volta. Já no convés, olhou para escuridão penhasco abaixo e fez um sinal de até logo.
Na base da montanha, o velho esperava sentado nos primeiros degraus da escada. Atlas se sentou ao seu lado, sem se lembrar de ter feito o caminho de volta. A camisa, enrolada na mão direita, estava empapada de sangue. Ele tirou do bolso da calça uma pequena algibeira. Segurando o cachimbo com os lábios, o velho pegou o tesouro da mão do pirata e tirou de lá uma pedra negra, tão negra quanto um buraco no universo. Ele a fechou na mão, apertando-a. Então, por entre o mindinho e a palma da mão fechada, deixou cair no fornilho do cachimbo um pó negro e brilhante.
O velho sacudiu o cachimbo, e o fumo se acendeu. Ele tragou a fumaça e a soltou pelo nariz, agora tão negra quanto a noite.
Atlas observou todo o ritual atentamente. Quando o velho voltou a olhar para ele, fez uma cara de “e agora?”. O velho soltou um sorriso gelado e disse:
— Um dia, voltaremos a nos encontrar. Nesse dia, nos tornaremos um só. E eu finalmente terei te destruído. Uma escuridão aos poucos tomou conta dos dois, e, antes de ficar inconsciente, Atlas ainda ouviu o velho dizer:
— Até lá, mantenha-se inteiro…
Atlas abriu os olhos e viu o teto da pequena cabana. Mexeu-se com dificuldade na cama, seu corpo ainda estava fraco. Olhou em volta e viu o velho curandeiro roncando em uma cadeira. Ele se levantou, cada movimento bem calculado. Passou a mão na barriga, onde a espada de Ônix o havia perfurado. A dor agora era suportável. Sentia-se muito melhor, apesar da cabeça pesada. O pirata atravessou o quarto com passos curtos e saiu da cabana, em direção ao píer. Parou na beira e ficou lá por muito tempo, refletindo sobre cada escolha que o levara até ali. Uma leve brisa tocava o seu rosto. Confortado pelo som e movimento das ondas, ele acariciava inconscientemente a mão direita, que doía.
Motivação: conto escrito e enviado para um concurso cultural. O objetivo era escrever um conto de piratas dentro do universo do personagem Ônix, do escritor William Morais. Este conto foi um dos vencedores do concurso.